A Câmara dos Deputados aprovou nesta semana, em primeiro turno, a Proposta de Emenda à Constituição nº 471/2005, conhecida como “PEC dos Cartórios” (melhor seria “PEC dos interinos de cartórios”).
De acordo com a proposta, será incluída ressalva no final do § 3º do art. 236 da Constituição, na seguinte forma:
“§ 3º O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses, ressalvada a situação dos atuais responsáveis e substitutos, investidos na forma da Lei, aos quais será outorgada a delegação de que trata o caput deste artigo.”
Na justificativa da proposta constou que:
“várias situações que deveriam ser temporárias, se consolidaram, no aspecto administrativo, sem que tenham amparo legal definitivo.
Por isso, não é justo, no caso de vacância, deixar essas pessoas experimentadas, que estão há anos na qualidade de responsáveis pelas serventias, que investiram uma vida e recursos próprios nas mesmas prestando relevante trabalho público e social, ao desamparo. Ao revés, justifica-se, todavia, resguardá-los.”
São necessárias, contudo, algumas ponderações a respeito da proposta.
Extinta a delegação a notário ou a oficial de registro, como ocorre nos casos de morte, renúncia ou aposentadoria do titular, a autoridade competente declara vago o respectivo serviço, designa substituto para responder pelo expediente e abre concurso no prazo máximo de seis meses.
Nesse contexto, a designação do preposto para responder pelo expediente é feita de forma temporária e precária. Sua missão é apenas responder pelo expediente. Em contrapartida recebe a remuneração dos serviços prestados. Caso a situação de interinidade se estenda no tempo, caberá ao designado a decisão de manter-se como responsável pelo expediente ou declinar do encargo.
É bem pertinente, nesse particular, a decisão do Colendo Supremo Tribunal Federal no Mandado de Segurança nº 29.283, na qual o então Ministro Carlos Ayres Britto afirmou:
“Solução diversa acabaria por beneficiar indevidamente alguém escolhido por critérios subjetivos, sem observância dos princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade. Em situações extremas como a deste processo, prefiro abrandar, excepcional e temporariamente, a regra do caráter privado do exercício dos serviços notariais e de registro do que abalroar os princípios fundamentais da impessoalidade e da moralidade”.
Ou seja, a demora na conclusão do concurso ou a inexistência de candidatos interessados apenas servirá para prolongar o tempo de permanência do responsável pelo expediente. Não tem o condão, por si só, de transformar o vínculo precário em algo permanente. Não há usucapião de função pública.
No mais, observo que, durante a tramitação da proposta na Câmara dos Deputados, foi criada uma Comissão Especial que realizou audiência pública e, ao final, aprovou proposta, posteriormente rejeitada no plenário, que previa a outorga da delegação àqueles “designados substitutos ou responsáveis pelas respectivas funções até 20 de novembro de 1994 e que, na forma da lei, encontrarem-se respondendo pela serventia há no mínimo cinco anos ininterruptos imediatamente anteriores à data de promulgação desta Emenda Constitucional.”
A proposta aprovada nesta semana é bem mais ampla do que aquela definida na Comissão Especial. Além disso, enseja uma série de discussões.
Ao tratar de atuais responsáveis e substitutos, sugere que mesmo quem não foi designado responsável pelo expediente poderá na vacância receber a outorga de delegação, desde que tenha sido investido na forma da Lei. Assim dispondo, projeta seus efeitos para o futuro. Por ocasião da vacância da atual delegação poderia o substituto pleitear a outorga da delegação.
Outro aspecto interessante diz respeito ao termo investidura, que no âmbito do Direito Administrativo abrange a nomeação, a posse e o início de exercício. No Estado de São Paulo, por exemplo, a designação responsável pelo expediente é feita pelo Corregedor Geral da Justiça (antes da Lei nº 8.935/1994 era o Secretário de Estado da Justiça que o fazia), de forma retroativa. Desse modo, a publicação da designação ratifica os atos anteriormente praticados. Os substitutos, por sua vez, são prepostos contratados pelo notário ou oficial de registro, que podem simultaneamente com o titular praticar todos os atos que lhe sejam próprios, cujos nomes são encaminhados ao juízo competente (Lei nº 8.935/1994, art. 20, § 2º e § 4º). E sua investidura se concretiza com a designação do titular, geralmente feita por escrito, com a ciência do preposto, e o início de exercício.
Por outro lado, cabe salientar que entre 1988 e 1994 diversos titulares receberam a delegação em conformidade com a legislação local, sendo que alguns atos foram desconsiderados pelo Conselho Nacional de Justiça, havendo ações judiciais que questionam a declaração de vacância; nesses casos o Poder Judiciário certamente adotará a solução mais adequada.
O texto da PEC é extremamente amplo e, por tal motivo, sua rejeição deve ser impor. Como afirmou o Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, a PEC “é uma gambiarra”.
E a forma adequada de acesso à titularidade é aquela prevista na Constituição Federal: aprovação em concurso público de provas e títulos. Cartório não passa de pai para filho.
No longínquo ano de 1827, aliás, foi editada a Lei de 11 de Outubro, nos seguintes termos:
“Art. 1º Nenhum officio de Justiça, ou Fazenda, seja qual fôr a sua qualidade, e denominação, será conferido a titulo de propriedade.”
No mais, é oportuno mencionar que interinos e substitutos são pessoas experientes e dotadas de grande conhecimento da matéria; geralmente são mantidas pelo titular que assume a delegação ou são contratadas em outra serventia, diante da excelente qualificação profissional. Muitos resolvem trilhar o caminho do concurso público, logrando aprovação; e alguns partem para outra atividade, começando uma nova vida.
Enfim, meritocracia é o único critério para galgar melhores posições.
Quanto à alegada inexistência de interessados para pequenas serventias, trata-se de problema não restrito à área notarial e registral, mas uma situação relativamente comum, verificada na Administração Pública e nas empresas privadas, as quais encontram dificuldades em preencher adequadamente determinados postos de trabalho em regiões mais afastadas.
No Estado de São Paulo, por exemplo, houve uma serventia que permaneceu vaga por mais de um século (v. nesse sentido, artigo de minha autoria), mas que posteriormente foi escolhida em concurso público.
Contribuíram para isso a melhoria na complementação de renda das serventias deficitárias, decorrente da Lei nº 15.432, de 4 de junho de 2014, e a criação de grupo específico a partir do 8º Concurso Público para as serventias remanescentes dos certames anteriores.
A experiência verificada no Estado de São Paulo, aliás, deve servir de exemplo a muitas Unidades da Federação. Em quinze anos foram realizados nove concursos públicos para preenchimento das vagas e em breve outro deverá ser iniciado.
Para isso, o Tribunal de Justiça do Estado superou resistências existentes, com medidas corajosas e eficazes.
Um célebre momento verificou-se por ocasião do 1º Concurso, quando o Colendo Conselho Superior da Magistratura manteve o certame mesmo após a edição da Lei Estadual nº 10.340, de 7 de julho de 1999, que impunha regras diferenciadas para a seleção de candidatos.
Constou do Comunicado veiculado à época que:
“porque está obrigada a observar o princípio da legalidade estrita – o que, em última análise, significa respeito à Constituição Federal como norma fundamental do sistema jurídico – a administração pública pode e deve recusar-se a cumprir leis e atos normativos que considere flagrantemente inconstitucionais”.
Enfim, a Proposta de Emenda Constitucional nº 471/2005 deve ser rejeitada, pois caracteriza enorme retrocesso e macula a imagem das instituições notariais e de registro do país, as quais têm sido fortalecidas com a realização de inúmeros concursos públicos, que trazem um arejamento ao setor, agregando pessoas de diferentes visões de mundo, as quais se empenham diariamente para aprimorar um serviço em constante evolução para o bom atendimento ao usuário, e que vem sendo prestado de forma eficiente e com uma remuneração justa.
Quanto a esse último aspecto, frise-se, a edição 2015 do Relatório Doing Business, elaborado pelo Banco Mundial, apontou que o custo percentual para registro, calculado sobre o valor da propriedade, vigorante no Brasil – de 2,5% – é semelhante ao dos Estados Unidos e Noruega; sendo inferior ao da China, Reino Unido e Singapura, e equivale a menos de metade do custo de países como Alemanha, Argentina, Austrália, França, Índia e Japão. Seguem os percentuais:
– África do Sul 6,2%
– Alemanha 6,7%
– Argentina 6,6%
– Austrália 5,2%
– Áustria 4,6%
– Bélgica 12,7%
– Brasil 2,5%
– Canadá 3,3%
– Chile 1,2%
– China 3,6%
– Colômbia 2,0%
– Dinamarca 0,6%
– Espanha 6,1%
– Estados Unidos 2,4%
– Finlândia 4,0%
– França, 6,1%
– Hong Kong 7,7%
– Índia 7,0%
– Itália 4,4%
– Japão 5,8%
– México 5,1%
– Holanda 6,1%
– Nova Zelândia 0,1%
– Noruega 2,5%
– Paraguai 1,9%
– Peru 3,3%
– Portugal 7,3%
– Reino Unido 4,6%
– Rússia 0,1%
– Singapura 2,8%
– Suécia 4,3%
– Suíça 0,3%
– Uruguai 7,0%
– Venezuela 2,5%
Lamentável ataque aos mais caros valores da nossa República, assim classifico a PEC 471. Certamente, no 2º Turno da votação desta PEC, TODOS os Congressistas votarão NÃO À PEC 471.