Conservação dos Livros Notariais Antigos

Recentemente foi publicada na Folha de São Paulo reportagem intitulada “Cartórios de São Paulo guardam registros da escravidão”, na qual constou que:

 

Uma rica documentação sobre a escravidão em São Paulo está dispersa, sem a necessária análise e preservação, no cartório do Primeiro Tabelião de Notas, pioneiro na cidade. O material se encontra num cofre, misturado a outros documentos como escrituras de casas e fazendas na incipiente cidade.

Pesquisadores do período criticam o fato de esses registros, essenciais para entender o cotidiano da escravidão urbana, permanecerem sob o poder de tabeliães, que exercem um serviço público, mas de caráter privado.

E mais adiante indica que alguns tabeliães “já destinaram esse acervo para fichamento e estudo, caso do Segundo Tabelião da capital, que enviou para o Arquivo Público do Estado de São Paulo toda a documentação relativa ao período que vai de 1742 a 1937”.

Esse Arquivo Público, aliás, conserva parte do acervo de outras serventias notariais do Estado, como tive a oportunidade de verificar pessoalmente, durante minha pesquisa de pós-graduação.

É interessante observar que as Ordenações do Reino de Portugal, diploma que permaneceu vigente após a independência do Brasil, conforme Lei de 20 de Outubro de 1823, estabeleciam que:

 

Título LXXVIII
Dos Tabelliães das Notas

[…]

2. Outrosi, todos os Tabelliães serão diligentes em guardarem muito bem os livros das Notas em todos os dias de sua vida. E por sua morte seus herdeiros serão obrigados de os entregar per inventario ao successor do Officio; o qual será obrigado de os guardar até quarenta annos, contados do tempo, que as scripturas foram feitas, de maneira que quando forem requeridos para mostrarem as Notas, as mostrem sãs, limpas e encadernadas em pergaminhos, ou o que mais quizerem. E por seu trabalho de as buscar haverão aquillo, que lhes per Nós he taxado, sem pedirem, nem levarem por isso outras dadivas. E se não mostrarem as ditas Notas boas, sãs, e sem dúvida alguma e encadernadas, como dito he, todo o dano e perda, que se ás partes disso seguir, pagarão por seus bens, e mais perderão seus Officios: não tolhendo porém de elles haverem as penas, que per Leis de nosso Reino e Direito devem haver.

Embora houvesse a obrigação de guardar os livros por quarenta anos, o fato é que a maioria dos Tabelionatos do Estado conservou todo o acervo de livros notariais, alguns escriturados no Século XVIII.  Essa conservação, via de regra, tem sido feita de forma bastante adequada, como pude verificar em diversas serventias que visitei. E nem poderia ser de outra forma, haja vista a fiscalização realizada pelo Poder Judiciário e o dever do notário de “manter em ordem os livros, papéis e documentos de sua serventia, guardando-os em locais seguros”, constante do art. 30, inciso I, da Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994.

Cumpre salientar, além disso, que a Lei nº 9.955, de 6 de janeiro de 2000, alterou a Lei de Registros Públicos, para incluir parágrafo único no art. 4º, com a seguinte redação: “Os livros notariais, nos modelos existentes, em folhas fixas ou soltas, serão também abertos, numerados, autenticados e encerrados pelo tabelião, que determinará a respectiva quantidade a ser utilizada, de acordo com a necessidade do serviço.”

Ou seja, o legislador introduziu na lei registrária norma para disciplinar os livros notariais, indicando para um tratamento unificado, haja vista a correlação existente entre os serviços notariais e os registros públicos. Abre-se, com isso, margem para interpretação de que se aplica para os serviços de notas o art. 26 da Lei de Registros Públicos, segundo o qual: “Os livros e papéis pertencentes ao arquivo do cartório ali permanecerão indefinidamente.”

Há, portanto, em regra, o dever de conservação indefinida dos livros de notas e de registro pelas serventias. A única exceção é aquela relativa aos Tabeliães de Protesto, já que a Lei nº 9.492, de 10 de setembro de 1997, dispõe expressamente que: “Art. 36. O prazo de arquivamento é de três anos para livros de protocolo e de dez anos para os livros de registros de protesto e respectivos títulos.”

No mais, cabe observar que, como os serviços notariais e de registro são exercidos por delegação do Poder Público, os arquivos produzidos são considerados de caráter público pela Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991, em decorrência do disposto no art. 7º, § 1º.

As regras de acesso, conservação, transferência e eliminação desse acervo são definidas pela legislação e complementadas pela regulamentação definida pelo Poder Judiciário, porquanto órgão incumbido – por disposição constitucional – pela fiscalização do serviço.

Aproveito a oportunidade para disponibilizar dois precedentes a respeito do assunto.

No Parecer CG nº147/2010-E, da lavra do magistrado Jomar Juarez Amorim, caso em que se considerou a expressa previsão de inutilização documental após a prévia digitalização ou microfilmagem, foi autorizada a entrega de parte de acervo (habilitações de casamento) a fundação, com o fim de preservação do valor histórico, desde que celebrado convênio, com o Tribunal de Justiça do Estado.

Já no Parecer CG nº 194/12-E, relativo ao acesso de pesquisadores a determinada serventia, o magistrado Luciano Gonçalves Paes Leme fez as seguintes ponderações:

 

A questão é delicada, pois, além da obrigação de ordem, segurança e conservação atribuída aos notários e registradores, que devem manter sob sua guarda e sua responsabilidade os acervos das serventias extrajudiciais (artigos 24, da Lei n.° 6.015/1973, 30, I, e 46, da Lei nº 8.935/1994), estas, por outro lado, não se equiparam a uma biblioteca, muito menos a uma pública, onde a consulta a livros, documentos e outros materiais é, sob certas condições, oportunizada aos interessados. De resto, também não se pode ignorar que os serviços notariais e de registro são exercidos em regime privado, com finalidade lucrativa.
Apesar destas ponderações, não se deve, do mesmo modo, relevar a importância das serventias extrajudiciais como repositório de informações de interesses acadêmicos e, particularmente, histórico-culturais.
Não há dúvida: guardam registros de informações que documentam alusões à identidade, à ação e à memória dos grupos formadores da sociedade brasileira.
Seguramente, tais unidades conservam documentos que constituem patrimônio cultural brasileiro.

Ao apreciar o parecer, o Des. José Renato Nalini, à época Corregedor Geral da Justiça, garantiu o acesso das pesquisadores às dependências da serventia, na seguinte forma:

 

assegurando-lhes a consulta e o manuseio do acervo da unidade, desde que, por lei, não protegido pelo sigilo ou por restrição de acesso ao público em geral, sob fiscalização do titular dos serviços ou de um preposto seu, durante quatro horas diárias, ao longo de três meses, ressalvando que as reproduções de documentos e a expedição de certidões dependerão do pagamento dos emolumentos correspondentes, pois, embora permitidas as anotações, a obtenção de cópias por via própria ou mediante intervenção de terceiras pessoas resta vedada.

Trata-se de solução adequada e que atende ao preceito do art. 30, inciso XII, da Lei nº 8.935/1994, que prevê a facilitação, por todos os meios, do acesso à documentação existente às pessoas legalmente habilitadas, mas de forma a preservar a integridade do acervo das serventias.

reinaldovelloso

Tabelião, Mestre e Doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo