O exercício em caráter privado da delegação

O art. 236 da Constituição Federal dispõe que os serviços notariais e de registro “são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público”. O § 2º acrescenta que os emolumentos relativos aos atos praticados devem observar as normas gerais estabelecidas em lei federal. E o § 1º previu a edição de lei para regular as atividades, disciplinar a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definir a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.

Em decorrência desse dispositivo foi editada a Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994, segundo a qual:

“Art. 21. O gerenciamento administrativo e financeiro dos serviços notariais e de registro é da responsabilidade exclusiva do respectivo titular, inclusive no que diz respeito às despesas de custeio, investimento e pessoal, cabendo-lhe estabelecer normas, condições e obrigações relativas à atribuição de funções e de remuneração de seus prepostos de modo a obter a melhor qualidade na prestação dos serviços.
[…]
Art. 28. Os notários e oficiais de registro gozam de independência no exercício de suas atribuições, têm direito à percepção dos emolumentos integrais pelos atos praticados na serventia e só perderão a delegação nas hipóteses previstas em lei.”

 

Dessas disposições extrai-se, em síntese, que a delegação é exercida em caráter privado, cabendo ao titular a percepção dos emolumentos integrais pelos atos praticados e, além disso, o gerenciamento administrativo e financeiro, de modo a obter a melhor qualidade na prestação dos serviços. A prestação desses serviços segue um modelo próprio, caracterizado pela atuação direta do próprio delegado ou preposto autorizado, com a remuneração paga diretamente pelo usuário do serviço, conforme tabela definida em lei, sob a fiscalização do Poder Judiciário.

Ao tratar do regime jurídico desses profissionais, Hely Lopes Meirelles, na consagrada obra Direito Administrativo Brasileiro, precisamente afirmou que:

“Agentes delegados são particulares que recebem a incumbência da execução de determinada atividade, obra ou serviço público e o realizam em nome próprio, por sua conta e risco, mas segundo as normas do Estado e sob permanente fiscalização do delegante. Esses agentes não são servidores públicos, nem honoríficos, nem representantes do Estado; todavia, constituem uma categoria à parte de colaboradores do Poder Público. Nessa categoria se encontram os concessionários e permissionários de obras e serviços públicos, os serventuários de ofícios ou cartórios não estatizados, os leiloeiros, os tradutores e intérpretes públicos, e demais pessoas que recebem delegação para a prática de alguma atividade estatal ou serviço de interesse coletivo.”

 

No mesmo sentido, o Ministro Ayres Britto, por ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.643, pelo Supremo Tribunal Federal, afirmou que:

“serviços notariais e de registro são típicas atividades estatais, mas não são serviços públicos, propriamente. Inscrevem-se, isto sim, entre as atividades tidas como função pública lato sensu, a exemplo das funções de legislação, diplomacia, defesa nacional, segurança pública, trânsito, controle externo e tantos outros cometimentos que, nem por ser de exclusivo domínio estatal, passam a se confundir com serviço público”.

 

Ou seja, embora exerçam uma função pública em sentido amplo, os agentes delegados não são servidores públicos.

Notários e registradores, após aprovação em concurso público de provas e títulos, recebem a outorga de determinação delegação, que é exercida por sua conta e risco, segundo parâmetros definidos na legislação, cabendo a esses profissionais, sob pena de infração administrativa, a adoção de providências para manutenção da qualidade na prestação dos serviços, como a contratação de número suficiente de prepostos.

A situação desses profissionais é bem diferente daquela de um servidor público, como o escrivão de um ofício judicial, o qual é remunerado pelos cofres públicos, tem direito a repouso semanal remunerado, irredutibilidade de vencimentos, décimo terceiro salário, gozo de férias remuneradas com, pelo menos, um terço a mais que a remuneração normal, dentre outros benefícios e gratificações previstos na legislação específica. Além disso, os meios materiais necessários para o desempenho dessas atividades são fornecidos diretamente pelo Poder Público.

A realidade do notário e do registrador, por sua vez, envolve uma série de encargos para disponibilizar a adequada prestação de serviços. Compete ao titular a instalação em imóvel próprio ou alugado, a aquisição e substituição do mobiliário e equipamentos, a manutenção da estrutura da serventia, a contratação, fiscalização dos atos e remuneração de prepostos; enfim, o gerenciamento administrativo e financeiro da unidade de serviço.

Essa distinção foi observada pelo Ministro Ayres Britto, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.602, nos seguintes termos:

“Deveras, se o cargo público efetivo é provido por nomeação, toda serventia cartorária extra-judicial tem na delegação a sua inafastável forma de investidura; se o exercício dos cargos públicos efetivos é remunerado diretamente pelos cofres do Estado, o exercício das atividades notariais e de registro é pago pelas pessoas naturais ou pelas pessoas coletivas que deles se utilizem; se ao conjunto dos titulares de cargo efetivo se aplica um estatuto ou regime jurídico-funcional comum, ditado por lei de cada qual das pessoas federadas a que o servidor se vincule, o que recai sobre cada um dos titulares de serventia extra-judicial é um ato unilateral de delegação de atividades, expedido de conformidade com lei específica de cada Estado membro ou do Distrito Federal, respeitadas as normas gerais que se veiculem por lei da União acerca dos registros públicos e da fixação dos sobreditos emolumentos (inciso XXV do art. 22 e §§ 1º e 2º do art. 236 da Carta de Outubro, um pouco mais acima transcritos); se as pessoas investidas em cargo público efetivo se estabilizam no serviço do Estado, vencido com êxito o que se denomina de ‘estágio probatório’, e ainda são aquinhoadas com aposentadoria do tipo estatutário, pensão igualmente estatutária para os seus dependentes econômicos, possibilidade de greve, direito à sindicalização do tipo profissional (não da espécie econômica) e mais uma cláusula constitucional de irredutibilidade de ganhos incorporáveis aos respectivos vencimentos ou subsídios, nada disso é extensível aos titulares de serventia extra-forense, jungidos que ficam os notários aos termos de uma delegação administrativa que passa ao largo do estatuto jurídico de cada qual dos conjuntos de servidores da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Enfim, as marcantes diferenciações pululam a partir do próprio texto da Magna Carta Federal, permitindo-nos a serena enunciação de que as atividades notariais e de registro nem se traduzem em serviços públicos nem tampouco em cargos públicos efetivos.”

 

O gerenciamento administrativo e financeiro do serviço envolve também o planejamento e a constituição de provisão para situações específicas, como a substituição de equipamentos, mudança de imóvel, pagamento de encargos trabalhistas, como o décimo terceiro salário dos empregados e rescisões de contrato de trabalho, formação de reserva financeira para períodos de menor movimento e investimento de longo prazo para complementação de aposentadoria, haja vista o caráter pessoal da delegação e a submissão ao regime geral de previdência social. Além disso, o patrimônio formado ao longo de sua vida profissional deve assegurar meios para satisfação da responsabilidade civil por eventuais danos causados no exercício da atividade.

Especificamente em relação à responsabilidade civil, o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, da lavra do Ministro Herman Benjamin, ao apreciar o Recurso Especial nº 1.087.862/AM, é bem elucidativo:

“2. No caso de delegação da atividade estatal (art. 236, § 1º, da Constituição), seu desenvolvimento deve se dar por conta e risco do delegatário, nos moldes do regime das concessões e permissões de serviço público.
3. O art. 22 da Lei 8.935/1994 é claro ao estabelecer a responsabilidade dos notários e oficiais de registro por danos causados a terceiros, não permitindo a interpretação de que deve responder solidariamente o ente estatal.
4. Tanto por se tratar de serviço delegado, como pela norma legal em comento, não há como imputar eventual responsabilidade pelos serviços notariais e registrais diretamente ao Estado. Ainda que objetiva a responsabilidade da Administração, esta somente responde de forma subsidiária ao delegatário, sendo evidente a carência de ação por ilegitimidade passiva ad causam.
5. Em caso de atividade notarial e de registro exercida por delegação, tal como na hipótese, a responsabilidade objetiva por danos é do notário, diferentemente do que ocorre quando se tratar de cartório ainda oficializado.”

 

Percebe-se, portanto, que a vida econômica do titular de uma serventia não difere muito daquela de um empresário, haja vista a necessidade de constante tomada de decisões sobre custeio, investimentos e pessoal.

Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal essa similitude foi observada. No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.089, o Ministro Joaquim Barbosa asseverou que:

“As pessoas que exercem atividade notarial não são imunes à tributação, porquanto a circunstância de desenvolverem os respectivos serviços com intuito lucrativo invoca a exceção prevista no art. 150, § 3º da Constituição. O recebimento de remuneração pela prestação dos serviços confirma, ainda, capacidade contributiva. A imunidade recíproca é uma garantia ou prerrogativa imediata de entidades políticas federativas, e não de particulares que executem, com inequívoco intuito lucrativo, serviços públicos mediante concessão ou delegação, devidamente remunerados. Não há diferenciação que justifique a tributação dos serviços públicos concedidos e a não-tributação das atividades delegadas.”

 

Outro precedente que pode indicado é a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.800. Nesse caso, afirmou o Ministro Ricardo Lewandowski:

“A atividade desenvolvida pelos titulares das serventias de notas e registros, embora seja análoga à atividade empresarial, sujeita-se a um regime de direito público. Não ofende o princípio da proporcionalidade lei que isenta os ‘reconhecidamente pobres’ do pagamento dos emolumentos devidos pela expedição de registro civil de nascimento e de óbito, bem como a primeira certidão respectiva.”

 

Como bem notado pelo eminente Ministro, embora a atividade notarial e de registro seja análoga a dos empresários, há importantes aspectos distintivos: enquanto um empresário pode ampliar o objeto de suas atividades, com incursões em outros ramos da atividade econômica, cabe ao notário e ao registrador apenas praticar os atos previstos em lei e solicitados pelos interessados. E diferentemente de um empresário, que age no âmbito da livre iniciativa, a atividade de notários e registradores é submetida a uma minuciosa regulação, sujeita a constantes modificações.

Esse risco, no entanto, é mitigado quando o titular tem condições de realizar uma provisão para contingências, que deve ser proporcional à estrutura da unidade de serviço.

O sistema notarial e de registro de nosso país está construído sobre uma sólida base e o regime vigente confere aos titulares tranquilidade para o desempenho de suas funções, transmitindo à sociedade uma imagem de confiabilidade. Qualquer mudança nesse regime jurídico certamente representará um risco institucional.

O exercício em caráter privado estimula o aprimoramento profissional, o aumento da eficiência, a constante inovação, o esmero no atendimento ao público. Ao comentar a opção do constituinte de 1988 pelo regime de delegação dos serviços notariais e de registro, o Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, Desembargador José Renato Nalini, afirmou que:

“A solução de se entregar tal prestação a profissionais oficiais, exercentes de profissões públicas independentes, não é criação brasileira. Idêntica situação é constatável em inúmeros países, notadamente nos de tradição jurídica romano-germânica. Assim ocorre na Itália, em Portugal e na Espanha, modelos que serviram à edificação do nosso.
A atividade confiada a esse desempenho é regulada pelo Direito Administrativo, pois não há antagonismo entre o caráter público – administrativo – da função e os fins privados a cuja tutela os serviços notariais se preordenam. E não se veja nisso um paradoxo: exercício privado de funções públicas, ou exercício de poderes públicos de autoridade por entidades privadas, com funções administrativas. Cuida-se de original arranjo institucional, uma opção política de entrega, pelo Estado, de tais incumbências a atores privados.
O Estado teve de se convencer de que sua onipotência é falaciosa. Assenhoreou-se de tantas tarefas que não teve condições de se desincumbir delas a contento. Com esse arranjo institucional, o Estado passa a ser um observador vigilante. Ocupa a posição privilegiada de garante da persecução do interesse público. Desvencilha-se da obrigação, mas preserva o controle. Situação de maior privilégio não se mostrou factível.
A delegação é uma figura conhecida do Direito Administrativo e, desde que prevista na Constituição, dela o Estado pode se servir sem qualquer obstáculo. A função continua a ser pública. Mas é exercida em caráter privado. Por conta e risco do delegado” (Ética Geral e Profissional. 7. ed. Revista dos Tribunais. p. 482).

 

Esse é o regime vigente atualmente: confiável para a sociedade, cômodo para o Estado, estimulante para o notário e o registrador.

reinaldovelloso

Tabelião, Mestre e Doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo